MEMÓRIAS DE LEITOR*
Por João Gouveia
No ano de
1987 iniciei minha escolarização, um mês de aula e eu já completava oito anos,
sendo um dos que tinha mais idade e ao contrário de todos os outros não fizera
o pré-escolar, fato esse que atrasou um pouco minha alfabetização. Por outro
lado, mesmo sendo filho de pais semianalfabetos, ingressei na escola conhecendo
todas as letras do alfabeto. Meu pai com o pouco que sabia, ao ensinar o
código, conseguiu me iniciar no que mais tarde eu descobriria ser um mundo
encantador. Mas não vamos adiantar os fatos, ainda tenho muito a contar...
Aprendi a ler
muito rápido e fui aprovado nesses anos do ensino fundamental com médias acima
de nove em todas as disciplinas, compreendia textos que alunos de séries mais
avançadas teriam dificuldades para realizar tal tarefa. Porém, nesses primeiros
anos de escola não tive em mãos um único livro além do didático. Eu gostava do
livro, mas percebia que os textos não eram integrais e aqueles fragmentos
deixavam-me frustrado por saber que ainda tinha algo para ser lido daquelas
histórias e que dificilmente eu conseguiria ter acesso a esses livros. Não que
a escola não dispusesse de biblioteca, muito pelo contrário, era uma até
razoável que contava com um bom acervo. O problema é que aquele ambiente me
assustava. Primeiro, porque era pouco frequentado, apenas alguns desbravadores
esquisitos adentravam aquele espaço. Segundo, porque a funcionária que atendia
no espaço parecia não gostar de visitas e com seu ótimo atendimento fazia
questão de nos deixar afastado de todos aqueles livros. Não culpo aquelas
senhora, mas certamente deixei de conhecer boas histórias porque tinha medo do
ambiente e dela, principalmente.
Se nesse
período no espaço escolar não fui bem sucedido como leitor, fora dele a vida me
reservara belas oportunidades. Por influência dos patrões do meu pai, que eram
nossos vizinhos, tive acesso a minhas primeiras leituras independentes e
integrais. Comecei a acompanhá-los para a Igreja Adventista e participava da
escola sabatina, não tinha dinheiro para comprar os livros de estudo, mas
ganhava do patrão. Eles eram assinantes de uma revista chamada Nosso amiguinho
e me davam os exemplares já lidos. Esse período foi de grande importância na
minha formação, pois a revista apesar de ser para crianças era além de divertida,
muito informativa, o que me ajudava e muito nas tarefas da escola.
Nessa mesma
época, ainda por influência dos adventistas, comecei a ler a bíblia. E como
eram leituras dirigidas, adaptadas ao público infantil, fiquei apaixonado pelas
histórias do velho testamento e especialmente, pelas parábolas de Jesus no novo
testamento. Pela facilidade que tinha em ler e compreender, ajudava minha mãe
com as lições da escola bíblica, sendo que aos dez anos fiz um curso, apenas
como ouvinte, chamado Revelações do apocalipse, no qual tive participação
excelente superando a média de muitos adultos cursistas. Alguns anos mais tarde
os patrões se mudaram para uma casa distante da nossa e eu perdi com isso a
minha oportunidade de ter acesso a material de leitura novo e bem cuidado.
Veio a
adolescência e com ela uma fase de descobertas, namoros, interesse por esportes
e com isso a leitura passou um longo período afastada de minhas prioridades.
Não me lembro de ter lido nada de interessante nessa época e o pouco que li não
foi por vontade e sim para cumprir atividades das disciplinas. Somente no final
desse ciclo é que me interessei por algumas leituras graças a uma professora de
língua portuguesa que tinha uma biblioteca em casa, toda montada com livros
ganhados das editoras. Um dos livros que ela me emprestou era O assassinato do conto policial, uma
história muito bacana que me prendeu ao livro por vários dias em atividades de
leitura e releitura. Essa professora foi uma grande incentivadora da leitura,
não só pelas dicas, mas principalmente por ter o desprendimento em oferecer os
livros sem se preocupar com datas para devolução ou possíveis extravios. Uma
pena que só estudei um ano com ela. Mudei de escola para fazer o ensino médio
mais perto de minha casa, pois tinha de estudar a noite e a cidade era muito
perigosa. Por conta da mudança de horário, do trabalho que arrumara e de outros
interesses da juventude, novamente a leitura foi deixada para segundo plano.
O ensino
médio não ajudou a consolidar minha formação como leitor. Os livros que li
durante os três anos foram todos leituras obrigatórias da disciplina de
literatura, existente na época. Por serem clássicos, linguagem difícil de
alguns autores, não me interessei por nenhuma das leituras, com exceção do
livro Vidas Secas. Enxerguei nele a
vida de minha família quando vivia no nordeste, não na intensidade do livro,
mas com grande identificação nos sofrimentos das personagens. A história fez
sentido para mim.
Terminado o ensino médio, fui
fazer Pedagogia. E tenho que dizer aqui: alguns dos autores que li durante o
curso continuam uma incógnita em minha mente. Não imagino o que eles queriam
dizer. Apesar dessas frustrações, tornei-me um leitor de Paulo Freire, também
por identificação pessoal, até mesmo pelo seu modo simples de se comunicar com
o leitor. Hoje, como professor, compreendo na prática que alguns dos teóricos
estudados na academia jamais passarão disso, apenas teoria. E que outros são
importantíssimos para fundamentar nossa prática em sala de aula, caso contrário
não precisaríamos ficar quatro anos lendo e discutindo algumas abordagens
teóricas se algo de bom não aproveitássemos delas.
Quando
conclui a faculdade e fui atuar como professor nas séries iniciais tive que me
reinventar como leitor, pois precisava conhecer literatura infantil. A escola
onde trabalho conta com ótimo acervo nessa área. Devorei literatura infantil e
para minha surpresa, muitos anos mais tarde eu estava realizando um sonho de
infância, ter em mãos o que não tive nos primeiros anos de escola. E não é que
algumas daquelas histórias ainda se faziam presentes nas minhas lembranças,
justamente aquelas que eu tinha lido apenas fragmentos.
Finalmente,
chegamos ao momento atual em que sou acadêmico do curso de Letras e atuo como
professor de língua portuguesa no ensino fundamental e médio. Como leitor tenho
me aplicado muito a leituras teóricas e adquirido um gosto especial pela
literatura brasileira. Machado de Assis tem assumido um lugar cativo nas minhas
horas de leitura, paralelamente assisto as adaptações de sua obra para a TV e o
cinema. Não tenho mais vontade de ler literatura de autoajuda, já li bastante
na época que fazia pedagogia por indicação de colegas e professores do curso.
Leio hoje por obrigação, as circunstâncias de estudante nos impõem, e leio por
prazer e diversão, não encaro os livros como desafio. Eles não foram feitos
para desafiar ninguém e sim para encantar, por isso jamais termino de ler um
livro que não me encanta, mesmo que me desafiem.
Enfim, a leitura teve papel
principal na minha história de vida como formadora e orientadora de muitas das
minhas escolhas. Agradeço a todos que me incentivaram e partilharam comigo essa
inesgotável fonte de informação e prazer.
*Texto produzido na disciplina de
Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, curso de Letras/UNIR.
Data: 17 de maio de 2011.
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